Adicional de Cofins na importação é medida protecionista
e inválida
Por Igor Mauler Santiago
Além de escaramuças políticas como a devolução, pelo
Presidente do Senado, da Medida Provisória 669/2015, e de desfeitas econômicas
como a do Ministro da Fazenda, que a tachou de “brincadeira cara”, a
desoneração da folha de pagamentos enseja também relevantes debates jurídicos.
Trata-se da
substituição, para setores escolhidos, das contribuições de 20% sobre a folha[1]
pela incidência de 2% (serviços) ou 1%[2] (produtos) sobre a receita bruta, na
forma dos artigos 7º e 8º da Lei 12.546/2011. O gravame ficou conhecido como
Contribuição Previdenciária Sobre a Receita Bruta, ou CPRB.
Um dos referidos debates concerne àqueles casos em que,
embora concebida para reduzir a carga tributária dos segmentos contemplados –
como afirma a Exposição de Motivos da Medida Provisória 540/2011, que inaugurou
o regime – a desoneração acaba por elevar o valor devido por certas empresas
(combinação de folha reduzida e receita elevada).
Outro, de que cuidaremos hoje, diz respeito ao aumento da
Cofins-importação para os produtos atingidos pela desoneração (Lei 12.546/2011,
artigo 21), sob a alegada necessidade[3] de equiparar-se à carga tributária
destes (Cofins interna + CPRB) a de seus similares importados
(Cofins-importação majorada em 1%[4]). Em síntese, todos os produtos alcançados
pela desoneração estão hoje sujeitos ao seguinte tratamento, no que toca à
Cofins:
● alíquota interna = X (zero, 7,6%, outras)
● alíquota na importação
= X + 1% (1%, 8,6%, etc.)
Observe-se ainda que, para os importadores submetidos ao
regime não-cumulativo, os créditos de Cofins-importação serão calculados com
base na alíquota interna, isto é, serão sempre 1% inferiores à alíquota
efetivamente paga na entrada dos produtos (Lei 10.865/2004, artigo 15,
parágrafos 3º e seguintes).
Pensamos que a desigualação das alíquotas de Cofins para
bens nacionais e importados é inválida pelas seguintes razões. Desde logo,
porque a Constituição é insistente na garantia da livre concorrência, como se
verifica dos seguintes comandos:
● artigo 146-A: lei complementar sobre critérios
especiais de tributação para prevenir desequilíbrios na concorrência;
● artigo 150, inciso II: vedação de tratamento desigual a
contribuintes em idêntica situação;
● artigo 170, inciso IV: livre concorrência como
princípio geral da atividade econômica.
A garantia valeria apenas para os produtos e serviços
originários do Brasil, ficando permitida a discriminação dos importados?
Pensamos que não, já que a Constituição predica a igualdade entre os Estados
(artigo 4º, inciso V) e foi expressa sempre que, por graves razões
estratégicas, quis (a) restringir aos nacionais o gozo de certos direitos
econômicos, como a exploração de recursos minerais e potenciais hídricos
(artigo 176, parágrafo 1º) e a propriedade de empresas jornalísticas (artigo
222), ou (b) controlar o acesso de estrangeiros a determinados campos, como a
navegação de cabotagem e interior (artigo 178, parágrafo único), a propriedade
ou a posse de terras (artigo 190), a participação em instituições financeiras
(artigo 192) e os serviços privados de assistência à saúde (artigo 199,
parágrafo 3º).
Esse contexto normativo leva-nos a concluir que a
Constituição impõe, no âmbito de cada tributo, rigorosa igualdade de tratamento
entre bens e serviços nacionais e importados, conclusão que se reforça pela
existência de um mecanismo específico para a introdução de eventuais discriminações
voltadas ao reequilíbrio do mercado: o imposto de importação (artigo 153,
inciso I).
Fundamento independente que leva ao mesmo resultado é o
artigo III do GATT – General Agreement on Tariffs and Trade[5], que veda o
tratamento tributário menos favorável a produtos estrangeiros. Como sabido, o
acordo é tido em alta conta pela jurisprudência brasileira, tendo inclusive
inspirado a Súmula 20 do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “a
mercadoria importada de país signatário do GATT é isenta do ICM, quando
contemplado com esse favor o similar nacional”.
A pergunta é: a instituição de um tributo sobre a receita
da venda de certos produtos nacionais, substitutivo de contribuição sobre os
pagamentos feitos aos trabalhadores envolvidos na sua produção, justifica o
aumento proporcional de exação incidente sobre a importação de bens idênticos?
Matematicamente, as alíquotas coincidem (Cofins + CRPB =
Cofins-importação + adicional). Mas é preciso considerar que a CPRB faz as
vezes de contribuição sobre a folha de pagamentos, e que esta já vem embutida
no preço dos produtos importados.
Deveras, a teor do Anexo I do Acordo sobre Subsídios e
Medidas Compensatórias celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio,
são exemplos de subsídios irregulares “a isenção total ou parcial, a remissão
ou o diferimento, concedidos especificamente em função de exportações, de
tributos diretos ou contribuições sociais pagos ou pagáveis por empresas
industriais ou comerciais”.
É dizer: se os bens já vêm onerados pelos encargos
previdenciários exigidos pelo seu país de origem – o qual não pôde exonerá-los
ou devolvê-los ao exportador –, não há espaço para a incidência de tributo
brasileiro (o adicional de Cofins-importação) que espelhe a nossa contribuição
sobre a folha ou o gravame que ocupe o seu lugar (a CPRB).
A igualdade possível quanto aos tributos diretos – pois
estes serão necessariamente diferentes nos dois países (imposto de renda,
imposto predial, contribuições sobre a folha etc.) – já existia na chegada dos
importados ao Brasil. O que cabe, então, é impor sobre eles os tributos
brasileiros sobre o consumo – os mesmos aplicáveis aos produtos nacionais –,
pois estes podem ser e em regra são anulados na origem, no momento da
exportação.
Em suma: invoca-se uma redução da carga tributária
interna (efeito normal da desoneração da folha, embora haja casos desviantes)
como pretexto para o aumento da tributação das importações... O paradoxo
evidencia o caráter protecionista da regra em exame.
Se não fosse inválido por essas duas razões (ofensa à
Constituição e ao GATT/OMC), o adicional de Cofins-importação deveria, quando
nada, gerar créditos para os importadores sujeitos ao regime não-cumulativo. De
fato, como conceber um tributo que é não-cumulativo quanto a uma parte de sua
alíquota e cumulativo quanto à outra[6]? Este hibridismo – que a Receita
Federal tenta justificar com o argumento esotérico de que o adicional “guarda
relativa independência em relação à Cofins-importação”[7] – não se compatibiliza
com o artigo 195, parágrafo 12, da Constituição, que erige o segmento
econômico, e não os estratos de alíquota, como critério para aplicação da
não-cumulatividade.
Por fim, cabe indagar en passant se a própria CPRB
poderia ser cumulativa, como é, para os setores sujeitos ao PIS e à Cofins
não-cumulativos, certo como é que o parágrafo 13 do artigo 195 da Constituição,
que a autoriza, vincula-se integralmente ao parágrafo 12, que se vem de
comentar.
[1] Artigo 22, incisos I e III, da Lei 8.212/91.
[2] Originalmente, 1,5%.
[3] Ver Exposição de Motivos da Medida Provisória
540/2011.
[4] Originalmente, 1,5%.
[5] Incorporado à nossa ordem jurídica pela Lei 313/48, o
GATT serviu de base para o tratado que constituiu a OMC, este promulgado pelo
Decreto 1.355/94.
[6] Não se trata da sujeição de um mesmo contribuinte a
ambos os regimes, quanto a atividades diferentes, hipótese perfeitamente
possível e disciplinada na legislação (Lei 10.833/2003, artigo 3º, parágrafos
7º a 9º).
[7] Parecer Normativo Cosit 10/2014.
Igor Mauler Santiago é sócio do Sacha Calmon – Misabel
Derzi Consultores e Advogados, mestre e doutor em Direito Tributário pela UFMG.
Membro da Comissão de Direito Tributário do Conselho Federal da OAB.
Revista Consultor Jurídico, 18 de março de 2015, 10h30
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