quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Artimanhas do governo no ICMS (I)

Artimanhas do governo no ICMS (I)

Fonte: Gazeta do Povo

José Alexandre Saraiva

Conforme nossas duas últimas colunas, em que destacamos alentado parecer da lavra do jurista Heron Arzua sobre crédito de ICMS, ficou claro que esse tributo efetivamente é dos mais complexos. Certamente por isso mesmo, o Fisco não raro se vale de supostas brechas, quando não de questionáveis interpretações legais e contábeis para criar casuísmos a seu favor.

A propósito, sobre a recente vedação de compensação desse imposto introduzida pelo Decreto nº 3.208, do último mês de dezembro, a coluna transcreve mais um primoroso estudo do referido tributarista.

Com a palavra, Heron Arzua.

“É sabido que os contribuintes do imposto estadual de circulação de mercadorias e serviços (ICMS), ao realizarem vendas a consumidores finais, residentes e domiciliados noutro Estado da Federação, faziam a apuração do imposto a pagar em contabilidade gráfica mensal (que englobava todas as operações do período de um mês). Assim as coisas se passavam até o dia 31 de dezembro de 2015 no Estado do Paraná e, por igual, nas demais Federadas brasileiras.

Aliás, não só na hipótese acima descrita, mas em todas as operações mercantis, no círculo do ICMS, como regra normativa geral, o sistema de pagamento do imposto é deduzido na corrente dos créditos e débitos.

Mas, no pertinente às transações dirigidas ao consumo fora do Paraná, a partir de 1.º de janeiro de 2016, e ao pretexto da Emenda Constitucional nº 87, de 2015, o dever de recolher o ICMS pelas vendas a consumidores finais de outros Estados foi radicalmente modificado; de sorte a que a diferença entre a alíquota interestadual (7% para os Estados do Norte e Nordeste e 12% para os do Sul e Sudeste) e a interna (por regra, 18%) venha a ser destinada, progressivamente, ao Estado de destino. (Em 2016, 60% da dita diferença é atribuída ao Estado de origem e 40% ao de destino, percentuais que se alteram ano a ano até 2019 – quando a integralidade da diferença caberá ao Estado de destino.)

Publicou, então, o Governo do Paraná um edito regulamentar (Decreto 3.208, de 23 de dezembro de 2015), anunciando aos seus súditos que a parcela de valor relativa à diferença de alíquota que couber ao Erário local há de ser paga em documento específico (Guia Nacional de Recolhimento), no prazo previsto no inc. XXII, do caput, do art. 75, do Regulamento do ICMS, sendo vedada a compensação (da aludida parcela) com eventuais créditos ou saldo credor acumulado em conta gráfica. (Art. 327-H, incs. I e III, do Decreto citado.) (Para confrontar: ver textos da aludida Emenda Constitucional 87 e do Decreto 3.208, nas partes que interessam.)

Esta, em breves palavras, a questão de fato. Na terra das Araucárias, doravante, a exação incidida na operação anterior, no ver do Fisco, não pode ser abatida do quantum de tributo a pagar pela operação de saída da mercadoria.
O Direito

Ocorre singelamente que a proibição de compensar o imposto devido com o pago anteriormente não guarda nenhuma aderência com o figurino constitucional a ele atribuído, tal como estampado no art. 155 da Constituição da República.

O princípio constitucional da não cumulatividade, que informa o tributo federativo desde a sua implantação pela Emenda Constitucional nº 18, de 1965, é uma das notas típicas desse imposto, não podendo ter a sua abrangência diminuída ou anulada por normas infraconstitucionais ou por meio de trabalho exegético.”

Artimanhas do governo no ICMS (final)

Conforme destacamos em nossas últimas colunas, o ICMS é, reconhecidamente, um dos mais complexos tributos dentre as demais imposições fiscais brasileiras. Certamente por conta das dificuldades de compreensão de algumas particularidades desse imposto, a Fazenda Pública dos diversos entes federativos se valem de artifícios, em geral embasados em certos enfoques do direito contábil, para criar casuísmos a seu favor.

Em alentados pareceres, o jurista Heron Arzua enfrentou essa problemática, dando-nos a honra de reproduzir neste espaço suas preciosas reflexões, cuja conclusão, centrada no Decreto 3.208/2015 do governo do Paraná, transcreve-se na sequência.

Mais uma vez, com a palavra Heron Arzua:

“Reza o Texto Maior que o ICMS ‘será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.’ (Art. 155, § 2º, I, da CF).

Como dizem os doutrinadores (Geraldo Ataliba, por todos), o princípio da não cumulatividade está direcionado às Federadas, à vista de que a percussão do ICMS em cada operação ou prestação faz surgir uma relação de crédito em favor dos contribuintes.

Averba Roque Carrazza que a dicção constitucional ‘compensando-se o que for devido’ confere, de modo direto ao sujeito passivo do ICMS, o direito de abatimento, oponível, ipso facto, ao Poder Público no caso deste agir de maneira inconstitucional, seja na instituição como providência legislativa, seja na cobrança (atividade administrativa) do tributo. (‘ICMS’, Malheiros Editores, 16ª edição, p. 401.)

Paulo de Barros Carvalho é peremptório: ‘O primado da não cumulatividade é uma determinação constitucional que deve ser cumprida, assim por aqueles que dela se beneficiam, como pelos próprios agentes da Administração Pública.' (‘ Regra-Matriz do ICM’, tese de livre docência apresentada na PUC/SP, 1981, inédita, p. 377.)

‘Não estamos, na hipótese, diante de simples recomendação do legislador constituinte, mas de norma cogente que, por isso mesmo, nem o legislador ordinário, nem o administrador nem, muito menos, o intérprete podem desconsiderar.’ (Roque Carrazza, op.cit., p. 403.)

Como corolário de tudo o que se viu até aqui, pode-se concluir que o método da compensação é um norte constitucional, pelo qual o ICMS se apresenta.

Destarte, o tributo estadual será não cumulativo porque em cada operação é garantida ao contribuinte, pela Constituição, um abatimento correspondente aos montantes cobrado nas operações anteriores.

Veja-se que antes do indigitado Decreto nº 3.208-15, quando o ICMS ficava todo na Unidade Federativa de origem, o ajuste era feito graficamente, mês a mês, com submissão integral ao postulado constitucional da não cumulatividade.

Por óbvio, à parcela que doravante fica com o Paraná há de se adotar igual procedimento.
Conclusão

Significa dizer, numa palavra, que o Decreto nº 3.208, de 2015, no trecho que veda a compensação, é escancaradamente inconstitucional.”


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